Estamos vivendo um momento muito complicado em nossa
sociedade. Já não bastassem os problemas naturais de qualquer agrupamento
humano, ultimamente temos observado uma carga avassaladora de intolerância.
Seja religiosa, política, esportiva, ou de qualquer que seja a temática.
Pessoas se agredindo mutuamente tão somente por pensar de forma diferente. Em
tempos de verbalizações acirradas e ampliadas pelas redes sociais na internet,
os debates têm se tornado a cada dia, mais agressivos e intolerantes. Muitas
das pessoas não aceitam e não toleram pontos de vistas diferentes dos seus e os
transformam em campos de batalha, onde muitas vezes amigos desfazem amizades de
anos. Parentes se digladiam, trocam palavras ofensivas em torno de ideias
diferentes. Pessoas desconhecidas promovem entre si ásperos diálogos em defesa
de suas ideias.
É natural que os pontos de vista
sejam os mais variados possíveis, entretanto a maior dificuldade é de se
aceitar as posições alheias. Ou de, pelo menos, tolerar.
Tolerar: v.t. Ser indulgente; suportar; condescender.
O filósofo inglês John Locke (1632-1704), foi um dos
autores que dedicou maior atenção à tolerância religiosa, como entendê-la e
como praticá-la. Por volta de 1865 escreve a “Carta acerca da tolerância²”,
exilado na Holanda. Pouco antes da revolução de 1868 que expulsará da
Inglaterra, o rei Jaime II, católico intolerante. Nessa época, católicos e
protestantes viviam sob intensas disputas em várias regiões do continente
europeu.
É bom discernir as atividades do pensador, pois se ele
demonstrou uma preocupação com a tolerância religiosa, não apresentava a mesma
dedicação em relação a outros setores da sociedade.
No nosso caso, destacaremos a tolerância religiosa desse
autor, que nos ajudará na compreensão desse artigo. Também assim, cabe a nós
fazer a substituição do termo religioso por social, político ou cultural, se
necessário. Locke enfatiza em sua carta:““Se um homem possui todas aquelas
coisas, mas se lhe faltar caridade, brandura e boa vontade para com todos os
homens, mesmo para com os que não forem cristãos, ele não corresponde ao que é
um cristão””².
O filósofo não entendia como que uma mensagem de paz e
tolerância entre os homens, deixada por Jesus, o Cristo, podia ser distorcida
de forma que os homens agrediam, expulsavam e até assassinavam outros em defesa
do próprio Evangelho. Mais um agravante, as duas partes litigantes defendiam o
mesmo Jesus, sob pensamentos distintos.
A tolerância em suas ideias, fica clara ao afirmar que,
mesmo para com os que não forem cristãos, se faltar algum daqueles princípios
citados, não corresponde a atitude de um cristão. Aponta a falta de coerência
para aquele que se diz seguidor de uma doutrina de tolerância e não age com
tolerância.
A tolerância para os defensores de opiniões opostas
acerca de temas religiosos está tão de acordo com o Evangelho e com a razão que
parece monstruoso que os homens sejam cegos diante de uma luz tão clara. Não
condenarei aqui o orgulho e a ambição de uns, a paixão a impiedade e o zelo
descaridoso de outros. Estes defeitos não podem, talvez, ser erradicados dos
assuntos humanos, embora sejam tais que ninguém gostaria que lhe fosse
abertamente atribuídos; pois, quando alguém se encontra seduzido por eles,
tenta arduamente despertar elogios ao disfarçá-los sob cores ilusórias. Mas que
uns não podem camuflar sua perseguição e crueldade não cristãs com o pretexto
de zelar pela comunidade e pela obediência às leis; e que outros, em nome da
religião, não devam solicitar permissão para a sua imoralidade e impunidade de
seus delitos; numa palavra, ninguém pode impor-se a si mesmo ou aos outros,
quer como obediente súdito de seu príncipe, quer como sincero venerador de
Deus: considero isso necessário sobretudo pra distinguir entre as funções do
governo civil e da religião, e para demarcar as verdadeiras fronteiras entre a
Igreja e a comunidade. Se isso não for feito, não se pode pôr um fim às
controvérsias entre os que realmente têm, ou pretendem ter, um profundo
interesse pela salvação as almas de um lado, e, por outro, pela segurança da
comunidade. (LOCKE, 1692).
O autor entende que alguma das dificuldades inerentes ao
ser humano seja difícil de erradicá-las, entretanto condena a perseguição
àqueles que impõem um modo de pensar ou de agir. Penetra na discussão da
ligação da Igreja com o Estado à época. O que configurava uma instituição
opressora. Com o poder às mãos, os mandatários abusavam das prerrogativas.
Locke faz uma consideração no seu texto do que considera como sendo Igreja.
Considero-a como uma sociedade livre e voluntária.
Ninguém nasceu membro de uma igreja qualquer - caso contrário, a religião de um
homem juntamente com propriedade, lhe seriam transmitidas pela lei de herança
de seu pai e de seus antepassados, e deveria sua fé a sua ascendência: não se
pode imaginar coisa mais absurda. O assunto explica-se desta maneira. Ninguém
está subordinado por natureza a nenhuma igreja ou designado a qualquer seita,
mas une-se voluntariamente à sociedade na qual acredita ter encontrado a
verdadeira religião e a forma de culto aceitável por Deus. A esperança de
salvação que lá encontra, como se fosse a única causa de seu ingresso em certa
igreja, pode igualmente ser a única razão para que lá permaneça. Se mais tarde
descobre alguma coisa errônea na doutrina ou incongruente no culto, deve sempre
ter a liberdade de sair como a teve para entrar, pois laço algum é
indissolúvel, exceto os associados a certa expectativa de vida eterna. Igreja é
portanto, sociedade de membros que se unem voluntariamente para esse fim.
(LOCKE, 1692).
Com tão brilhante assertiva, o pensador inglês nos
oferece a oportunidade de tecermos ligações com as mais variadas formas de
intolerância, e nos questionarmos se não é possível pensarmos de forma
semelhante em relação à outras questões.Por exemplo, em relação à política. Não
se pede que todos pensem de forma igual, mas que possam entender que pessoas
outras, entendem a área de maneira diferente à nossa.
A possibilidade do diálogo e do debate sobre ideias é
sempre salutar. Contudo, o que se pode e se deve evitar são as agressões, sejam
elas físicas ou verbais. Aquele que detém argumentos para defender suas ideias,
não sucumbirá ao desnível de agredir alguém. É desnecessário. A não ser que
queira fazer com que o outro aceite as suas ideias de forma imposta.
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