domingo, 27 de janeiro de 2019

O que fazer com filósofos do passado que se revelaram racistas e sexistas?

Julian Baggini


Elogie Immanuel Kant e alguém pode lembrar a você que ele acreditava que “a humanidade alcança sua maior perfeição na raça dos brancos” e que “os índios amarelos possuem talento escasso”. Louve Aristóteles e você terá que explicar como é possível que um sábio genuíno possa ter pensado que “o macho é por natureza superior, e a fêmea, inferior; o homem é o governante, e a mulher, a súdita”.

Escreva um tributo a David Hume, como fiz recentemente, e será criticado por louvar alguém que escreveu em 1753-54: “Tendo a suspeitar que os negros e todas as outras espécies de homens, em geral, sejam naturalmente inferiores aos brancos”.

Parece que estamos diante de um dilema. Não podemos simplesmente descartar como insignificantes os preconceitos inaceitáveis do passado. Mas, se pensarmos que a defesa de opiniões moralmente repreensíveis desqualifica alguém de ser visto como grande pensador ou líder político, não restará praticamente ninguém da história.

O problema não desaparece se excluirmos os homens brancos do establishment. O racismo era comum no movimento sufragista feminino de ambos os lados do Atlântico.

A sufragista americana Carrie Chapman Catt disse: “A supremacia branca será fortalecida pelo sufrágio feminino, e não enfraquecida”. Emmeline Pankhurst, sua companheira britânica na luta, virou defensora acirrada do colonialismo, negando que ele fosse “algo a ser criticado ou do que se envergonhar” e insistindo que, em vez disso, “é algo grandioso sermos os herdeiros de um império como o nosso”.

Tanto o sexismo quanto a xenofobia têm sido comuns no movimento sindicalista, tudo isso em nome da defesa dos direitos dos trabalhadores —dos trabalhadores homens e não imigrantes, que fique claro.

Mas é um equívoco pensar que ideias racistas, sexistas ou intolerantes de outras maneiras automaticamente desqualifiquem uma figura histórica como objeto de admiração. Qualquer pessoa que não consiga admirar figuras assim revela uma profunda falta de entendimento sobre como nossas mentes são condicionadas socialmente, mesmo as maiores delas.

Pelo fato de o preconceito parecer tão evidentemente errado, essas pessoas não conseguem imaginar como alguém possa deixar de enxergá-lo, a não ser que seja degradado em termos morais.

A indignação dessas pessoas supõe de modo arrogante que elas próprias são tão virtuosas que jamais seriam tão imorais, mesmo quando todos a sua volta fossem incapazes de enxergar a injustiça. Já deveríamos saber que isso não é verdade.

A lição mais perturbadora do Terceiro Reich é que ele foi apoiado em grande medida por cidadãos comuns que teriam levado vidas isentas de culpa, não fosse o acaso de terem vivido naqueles tempos particularmente tóxicos.

Qualquer confiança que possamos sentir no fato de que nós não faríamos o mesmo é infundada, já que hoje temos consciência do que as pessoas na época não sabiam. Tolerar o nazismo hoje é inimaginável, porque não é preciso imaginação alguma para entender exatamente quais foram suas consequências. Por que tantas pessoas acham impossível acreditar que qualquer chamado gênio possa ter deixado de enxergar que seus preconceitos eram irracionais e imorais?

Uma razão disso é que nossa cultura parte de uma premissa equivocada e muito arraigada: que o indivíduo é um intelecto humano autônomo, independente do ambiente social. Um conhecimento mesmo superficial de psicologia, sociologia ou antropologia jogaria por terra essa ilusão cômoda.

O ideal do Iluminismo de que todos somos capazes e devemos pensar por nós mesmos não deve ser confundido com a fantasia hiper-iluminista de que todos somos capazes de pensamento independente. Nosso pensamento é moldado por nosso ambiente, de maneiras profundas das quais nós mesmos não temos consciência. Aqueles que se negam a aceitar que são tão limitados por essas forças quanto todas as outras pessoas têm delírios de grandeza intelectual.

Quando uma pessoa está arraigada em um sistema imoral, torna-se problemático atribuir responsabilidade individual. Isso é perturbador, porque todos acreditamos com firmeza na ideia de que o lócus da responsabilidade moral é o indivíduo autônomo. Se levássemos a sério o condicionamento social de crenças e práticas repulsivas, o medo é que todos seriam perdoados e que nos restaria um relativismo moral intolerável.

Mas o receio de que seríamos incapazes de condenar o que mais precisa ser condenado é infundado. A misoginia e o racismo não são menos repulsivos pelo fato de serem produtos de sociedades, tanto ou mesmo mais do que de indivíduos.

Desculpar Hume não quer dizer tolerar o racismo; desculpar Aristóteles não é desculpar o sexismo. Racismo e sexismo nunca foram aceitáveis: as pessoas apenas acreditavam, de maneira equivocada, que fossem.

Aceitar isso não significa passar por cima dos preconceitos do passado. Tomar consciência de que mesmo pensadores como Kant e Hume foram produtos de seu tempo serve para nos lembrar de que as maiores mentes também podem ficar cegas diante de erros e males, se estes forem bastante onipresentes.

Isso também deve nos levar a questionar se os preconceitos que vêm à tona em suas observações mais infames não podem estar à espreita, em segundo plano, em outras partes de seu pensamento. Boa parte da crítica feminista feita à filosofia de “homens brancos mortos” é dessa natureza, argumentando que a misoginia evidente é só a ponta de um iceberg muito mais insidioso. Em alguns casos isso pode ser verdade, mas não devemos presumir que seja. Muitos pontos cegos são locais, deixando o campo geral de visão perfeitamente claro.

A defesa da misoginia de Aristóteles apresentada por Edith Hall, estudiosa dos clássicos da literatura grega e romana, constitui um exemplo rematado de como salvar um filósofo de seu próprio pior lado.

Em lugar de julgar Aristóteles pelos critérios de hoje, Hall argumenta que um teste melhor seria indagar se os fundamentos de seu modo de pensar o levariam a ser preconceituoso hoje. Dada a abertura de Aristóteles a evidências e à experiência, não há dúvida de que, se vivesse hoje, não seria necessário persuadi-lo de que as mulheres estão em pé de igualdade com os homens.

Também Hume se rendia à experiência, de modo que, se vivesse hoje, é provável que não suspeitaria nada de negativo em relação aos povos de pele escura. Em suma, não precisamos olhar além dos fundamentos da filosofia deles para entender o que estava errado no modo como eles os aplicaram.

Uma razão pela qual podemos relutar em perdoar os pensadores do passado é o receio de que desculpar os mortos nos obrigará a desculpar os vivos. Se não pudermos criticar Hume, Kant ou Aristóteles por seus preconceitos, como podemos criticar as pessoas que estão sendo cobradas pelo movimento #MeToo por atos que cometeram em círculos sociais em que esses atos eram completamente normais? Afinal, Harvey Weinstein não seguiu tipicamente a cultura do “teste do sofá” de Hollywood?

Há, no entanto, uma diferença muito importante entre os vivos e os mortos. Os vivos podem entender como seus atos foram errados, podem reconhecer o fato e demonstrar remorso. Quando seus atos forem crimes, podem enfrentar a Justiça. Não podemos nos dar ao luxo de sermos tão compreensivos com os preconceitos do presente quanto somos com os do passado.

Para transformar a sociedade, é preciso levar as pessoas a enxergar que é possível superar os preconceitos com que foram criadas. Não somos responsáveis por criar os valores distorcidos que moldaram a nós e a nossa sociedade, mas podemos aprender a assumir a responsabilidade por como lidamos com eles de agora em diante.

Os mortos não têm essa oportunidade; logo, é inútil desperdiçar nossa indignação castigando-os. Temos razão em lamentar as iniquidades do passado, mas culpar indivíduos por coisas que fizeram em tempos menos esclarecidos, aplicando os padrões de hoje, é duro demais.




Julian Baggini, escritor e filósofo britânico, é autor de “O que os Filósofos Pensam” (ed. Ideias e Letras, 2005) e “How  the  World  Thinks: A Global History  of  Philosophy” (2018).

Texto originalmente publicado no site Aeon; tradução de Clara Allain.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

Pecado da fé: ser cristão e seguir Jesus pode custar a vida nestes países

Ao menos 250 milhões de cristãos do mundo
(mais do que a população do Brasil) estão sujeitos a intimidações,
prisão e até morte por sua crença religiosa

Por Vanessa Barbosa

São Paulo – Um em cada 9 cristãos no mundo vive em países onde a prática da sua 
religião é proibida e perseguida. Só no ano passado, ao menos 4 mil seguidores do 
cristianismo foram mortos por motivos relacionados à fé, 5,6 mil foram detidos sem 
julgamento e sentenciados, e mais de 1,2 mil igrejas ou centros cristãos foram depredados.

Os dados alarmantes são do relatório compilado anualmente pela organização 
Open Doors USA, considerada uma autoridade no estudo de perseguição religiosa a cristãos.
Perseguição, segundo a ONG, é definida como “qualquer hostilidade experimentada como 
resultado da identificação de alguém com a religião“, o que pode incluir atitudes, palavras 
e ações hostis.

Segundo o relatório, ao menos 250 milhões de cristãos do mundo (mais do que a população
do Brasil) estão sujeitos a intimidações, prisão e até mesmo morte por sua crença religiosa.

O estudo avalia tanto o nível de perseguição institucionalizada e perpetrada por governos, 
quanto perseguições sociais e até mesmo familiares, listando os países onde os cristãos 
são mais severamente oprimidos.


Pelo décimo oitavo ano consecutivo, a Coreia do Norte lidera o ranking, seguida de países 
onde o extremismo islâmico é o principal e dominante motor da perseguição (caso de 7 dos
10 países mais opressores).

1. Coreia do Norte

População total no país: 25.611.000
Número de cristãos: 300.000
Principal crença: Ateísmo

O regime ditatorial norte-coreano é o principal opressor do cristianismo. No país que idolatra 
líderes supremos da família Kim, os cristãos são vistos como elementos hostis na sociedade 
e, por isso, devem ser erradicados.

Segundo o relatório, devido à constante doutrinação que permeia todo o país, vizinhos e até 
membros da família são vigilantes e denunciam qualquer atividade religiosa suspeita para as autoridades.

Havia esperança de que novos esforços diplomáticos em 2018 (incluindo as Olimpíadas de 
Inverno) levariam a uma diminuição da pressão e da violência contra os cristãos, mas não 
foi o caso.

2. Afeganistão
População: 36.373.000
Número de cristãos: indefinido
Principal crença: Islamismo

O Afeganistão declarou o Islamismo a religião de Estado em sua constituição. Por ser um 
estado islâmico por lei, funcionários do governo e cidadãos são hostis aos adeptos de 
qualquer outra religião. Os cristãos que vivem lá são incapazes de expressar sua fé,  
mesmo em particular, pois converter-se a uma fé fora do Islã é visto como uma traição 
à família, tribo e país.

3. Somália
População: 15.182.000
Número de cristãos: indefinido (da ordem de centenas)
Principal crença: Islamismo

Assim como no Afeganistão, o islamismo é a religião do estado na Somália. Mesquitas, 
madrasas (casas de estudos islâmicos) e representantes do grupo fundamentalista islâmico 
Al Shabab já declararam publicamente que não há espaço para os cristãos no país. 
Os crentes que deixaram o islamismo para seguir Jesus são frequentemente mortos quando descobertos.

4. Líbia
População: 6.471.000
Número de cristãos: 37.900
Principal crença: Islamismo

Após a derrocada do ex-ditador Muammar Gaddafi, a Líbia mergulhou no caos e na anarquia,
situação que permitiu que vários grupos militantes islâmicos controlassem partes do país. 
A ausência de um único governo central para impor a lei e a ordem  tornou precária a 
situação dos cristãos, que enfrentam abuso e violência por sua crença, principalmente por 
parte de grupos militantes islâmicos e criminosos organizados.

5. Paquistão
População: 200.814.000
Número de cristãos: 3.981.000
Principal crença: Islamismo

Igrejas históricas tradicionais têm relativa liberdade para adoração e outras atividades, no 
entanto, os cristãos são fortemente monitorados e não raro são alvo de ataques a bomba 
mortais. Grande parte da perseguição cristã no Paquistão vem dos grupos islâmicos radicais 
que florescem sob o favorecimento de partidos políticos, do exército e do governo. Os 
seguidores de Jesus também vivem com medo diário de serem acusados ​​de blasfêmia 
– o que pode levar à pena de morte no país.

6. Sudão
População: 41.512.000
Número de cristãos: 1.910.000
Principal crença: Islamismo

Desde 1989, o Sudão é governado pelo ditador Omar Hassan Ahmad al–Bashir, que
instaurou um Estado islâmico com direitos limitados para as minorias religiosas. Os cristãos 
enfrentam discriminação e pressão constantes, com várias igrejas demolidas. Cristãos 
convertidos com antecedentes muçulmanos estão particularmente em risco porque a 
conversão do Islã para outra religião é legalmente punível com a morte.

7. Eritreia
População: 5.188.000
Número de cristãos: 2.474.000
Principal crença: Cristianismo / Islamismo

Desde 1993, o presidente Afwerki tem perpetrado um regime brutal autoritário que repousa 
sobre violações maciças dos direitos humanos. Durante o período de estudo do relatório 
(de outubro de 2017 a novembro de 2018), as forças de segurança do governo realizaram 
incursões nas comunidades e aprisionaram centenas de cristãos em condições desumanas,
incluindo pequenos contêineres em calor escaldante.

Os cristãos estão sendo forçados a se juntar às forças armadas, e os protestantes, em 
particular, enfrentam sérios problemas com o acesso aos recursos da comunidade, 
especialmente os serviços sociais prestados pelo Estado. Essa extrema pressão e 
violência sancionada pelo Estado está forçando alguns cristãos a fugir da Eritreia – muitas 
vezes chamada de “Coréia do Norte da África” – e buscar asilo.

8. Iêmen
População: 28.915.000
Número de cristãos: Milhares (não especificado)
Principal crença: Islamismo

A guerra civil em curso no Iêmen criou uma das piores crises humanitárias na história 
recente, tornando a situação dos cristãos do país ainda mais difícil. O caos da guerra 
permitiu que grupos radicais assumissem o controle de algumas regiões do Iêmen e 
aumentassem a perseguição aos cristãos. Mesmo o culto privado é arriscado em algumas 
partes do país. Quem se converte para o cristianismo sofre violência adicional da família e 
sociedade.

9. Irã
População: 82.012.000
Número de cristãos: 800.000
Principal crença: Islamismo

A principal ameaça para os cristãos no Irã vem do próprio governo. O regime iraniano define 
o país como um estado islâmico baseado no islamismo xiita. Cristãos e outras minorias são 
vistos como uma distração indesejável para o ideal nacional. Por lei, um muçulmano que 
abandona a religião está  sujeito à pena de morte, embora não haja registros recentes de 
aplicação dessa lei por lá.

Muitos cristãos (especialmente convertidos) foram processados ​​e sentenciados a longos 
períodos de prisão. Outros ainda aguardam julgamento. Durante esse tempo, suas famílias 
enfrentam humilhação pública. Apesar da opressão estatal, a sociedade iraniana é muito 
menos fanática em relação às minorias religiosas do que as lideranças do governo.

10. Índia
População: 1.354.052.000
Número de cristãos: 65.061.000
Principal crença: Hinduísmo

Desde que o atual partido governante (nacionalista hindu) assumiu o poder em 2014, os 
ataques aos cristãos e outras minorias religiosas aumentaram. Os radicais hindus 
acreditam que podem atacar os cristãos sem consequências. Como resultado, os cristãos 
têm sido alvo constante de extremistas. A visão dos nacionalistas é que ser indiano é ser 
hindu, então qualquer outra fé – incluindo o cristianismo – é considerada não-indiana. 
Em algumas regiões do país, os convertidos ao cristianismo do hinduísmo experimentam 
extrema perseguição, discriminação e violência.

Fonte: Exame