O Dicionário filosófico de Voltaire (1694-1778) é uma obra-prima da literatura europeia moderna e um marco da filosofia das Luzes. Publicado em 1764, é lavra de um autor que conhecia a glória literária, desfrutava de uma reputação única entre os letrados da Europa e cultivara sem medo a inimizade dos poderes estabelecidos. A intenção de Voltaire é marcar posição no embate ideológico da época falando não para filósofos ou doutos, mas para um público mais amplo.
Na década de 1760, Voltaire vivia exilado em sua propriedade francesa, situada em Ferney, na borda da fronteira com a Suíça. Nem por isso relaxara as precauções em relação à possibilidade de censura e prisão, ameaças que pesavam sobre a cabeça dos intelectuais franceses de sua época. Por isso, imprimiu o Dicionário clandestinamente em Genebra com página de rosto indicando publicação “em Londres”. Depois, assumiu a autoria dos verbetes menos controversos e atribuiu os mais delicados a autores falecidos ou estrangeiros.
Malgrado essas precauções, o estilo o trai, e o Dicionário filosófico traz a marca indelével do gênio de Voltaire. Escrito em prosa límpida e direta, mas rica e variada, permeada por uma ironia que se compraz em assumir diversas figuras, é movido pelo intento inabalável de assegurar o triunfo da “razão” contra seus inimigos mais arraigados: “a superstição, o fanatismo, a extravagância e a tirania”. Livro tristemente atual, portanto, tendo em vista a (até aqui) bem-sucedida ofensiva dessas forças contra uma razão que se mostra, em nossa época, periclitante, especialmente em um país onde o legado das Luzes nunca foi visto com bons olhos (nem mesmo pela nossa tíbia tradição “liberal”, que, supostamente, seria a mais interessada em cultivá-lo).
Mas essa obra de caráter militante e combativo está longe de ser panfletária. Voltaire entende que, para persuadir seus leitores, a melhor estratégia é tocá-los, fazer vibrar sua sensibilidade, pôr em movimento sua imaginação. Escritor exímio, não tem dificuldade em tratar uma série de palavras catalogadas alfabeticamente como uma coleção de ensaios, sátiras e fragmentos magistrais, que argumentam em prol dos interesses da razão humana e deleitam com uma maravilhosa variedade e um rico colorido de anedotas, lugares-comuns, comparações inusitadas, conclusões inesperadas e toda sorte de recursos formais e estilísticos capazes de atrair o interesse de suas leitoras (e o público leitor, no Antigo Regime, é fortemente marcado pela mulher: o “belo sexo” é, no dizer da época, “o soberano e o árbitro do gosto e da língua”).
Um dicionário de ensaios
Voltaire não esperava que o Dicionário fosse lido de uma ponta a outra. Não é para isso que serve uma obra de consulta, e o mesmo vale, por razões diferentes, para um tomo de ensaios. O Dicionário tem um pouco dos dois: oferece a possibilidade de que se realizem consultas sobre algum assunto de interesse da leitora. Caso ela queira, por exemplo, saber mais sobre as “Abelhas”, se abrir o livro à página 12 da edição brasileira, será surpreendida com esta abertura — que nada diz do animal em questão, mas se vale dele como mote para uma consideração sobre a espécie humana: “As abelhas podem parecer superiores à raça humana, porque de sua substância produzem uma substância útil, enquanto de todas as nossas secreções não há uma só que seja boa para algo, e não há uma só que não torne o gênero humano desagradável”. Mesmo por um breve extrato como esse, pode-se ver que a tradução de Ivone Benedetti é primorosa e produz em língua portuguesa, com rara exatidão, os efeitos gramaticais e retóricos do original francês.
O ‘Dicionário’ tem um caráter militante e combativo, mas está longe de ser panfletário
Dito isso, nossa leitora poderia ficar decepcionada, pois Voltaire continua como que a evitar as abelhas ao longo do verbete, que na edição brasileira se estende por quatro páginas. Em compensação, caso persista na leitura, encontrará coisas assim: “Não sei quem disse primeiro que as abelhas têm um rei. Provavelmente não foi a um republicano que essa ideia acudiu”; ou ainda: “Em todos os tempos as abelhas propiciaram descrições, comparações, alegorias e fábulas à poesia”. Voltaire indica com isso que o nome “abelha” não designa um animal objetivo e neutro, mas opera, na história natural como na poesia, como um dispositivo metafórico. E, se o seu uso pelo poeta é deliberado, a metáfora de uma sociedade monárquica das abelhas trai certos valores políticos do entomólogo, que em vão protestará por sua neutralidade.
Lição preciosa: para haver ciência e para que a razão se imponha à ignorância, é preciso que cada um reflita sobre o que está dizendo. Rapidamente a leitora de Voltaire terá se sentido recompensada, pois agora descobriu ou teve confirmada a ideia de que a filosofia é, sobretudo, um antídoto à irreflexão e, logo, uma arma contra o dogmatismo que esta última engendra.
Desobrigada de percorrer o livro em ordem estrita, a mesma pessoa poderia ir à letra V, na qual encontraria o verbete “Vampiros”. “Como?! Vampiros em nosso século 18!”. Espanto justificado, aduz Voltaire, dado que uma “história dos vampiros” foi impressa em Paris “com a aprovação da Sorbonne”. Instituição privada com atuação pública, essa universidade, em vez de se dedicar, por exemplo, ao ensino da física de Newton, prefere propagar tolices. Mas seriam as lendas de vampiros meras superstições? Não teriam um valor inaudito para o filósofo ilustrado e sua leitora? Para começar, o que é, afinal, um vampiro? Neste ponto, o texto se torna nada menos que delicioso: “Esses vampiros eram mortos que saíam à noite dos cemitérios para vir sugar o sangue dos vivos, na garganta ou na barriga, para depois voltarem às suas covas. Os vivos sugados emagreciam, empalideciam e caíam em consunção; e os mortos sugadores engordavam, ganhavam cores vermelhas, ficavam completamente apetitosos. Era na Polônia, na Hungria, na Silésia, na Morávia, na Áustria e na Lorena que os mortos faziam esse rega-bofe”.
Coisa de gente pouco instruída; nada a ver, portanto, com a “Europa das Luzes”. Ou não seria o nome “vampiro” um pouco mais geral do que parece? “Não se ouve falar de vampiros em Londres, nem mesmo em Paris. Convenhamos que nessas duas cidades houve agiotas, financistas e negociantes que sugaram o sangue do povo em plena luz do dia; mas não estavam mortos, embora podres. Esses sugadores de verdade não moravam nos cemitérios, mas em palácios agradabilíssimos.” O que dizer de um texto cintilante como esse? Que ele não perdeu atualidade? É fazer pouco dos efeitos que reverberam nele.
O partido da filosofia
Existe no século 18 francês um “partido da filosofia”; mas não é uma unidade monolítica. A razão de Voltaire é diferente daquela de seus pares. Um bom exemplo é o verbete “Alma” (pp. 61–78 da edição brasileira). A Enciclopédia de Diderot e d’Alembert tem um verbete homônimo, mencionado por Voltaire. Enquanto os enciclopedistas tratam da alma filosoficamente, oferecendo uma história do conceito e de suas mutações da Antiguidade a Espinosa e Leibniz e chegando, por fim, à fisiologia (que reduz a alma ao corpo), Voltaire opta por realizar uma demarcação de território. Por certo, “alma é um termo vago e indeterminado que exprime um princípio desconhecido com efeitos conhecidos, que sentimos em nós”, o que explica por que os filósofos nunca chegaram a um acordo a seu respeito. Estariam por isso equivocados em bloco? De modo algum: as coisas da filosofia são assim mesmo, ora se prestam a determinação rigorosa, ora permanecem em aberto; o que não é motivo para nos entregarmos às fantasias do “livro sagrado” dos hebreus e dos cristãos, que irrita Voltaire com suas fábulas caprichosas, contradições abusivas e falta de sentido em geral. Onde os enciclopedistas ignoravam a religião e iam do animismo antigo ao materialismo moderno, Voltaire escolhe o combate em campo aberto e dilacera o inimigo de maneira impiedosa. A diferença é flagrante, e em vão buscaríamos nas páginas desse filósofo devoto da “religião natural” por qualquer apologia do materialismo fisiológico que entusiasma Diderot e os seus.
Desavença mais profunda ainda ele tinha com Rousseau, de quem gostava de caçoar, mas que, no Dicionário, é tratado como adversário digno de uma réplica ponderada. Rousseau afirmara, no Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens (1754), que o homem que vive em sociedade perverteu sua natureza e se afastou de sua própria humanidade. Ao que Voltaire responde: “Cada animal tem seu instinto, e o instinto do homem, fortalecido pela razão, leva-o à sociedade, assim como a comer e beber. Não foi de modo algum a necessidade da sociedade que degradou o homem; é o afastamento da sociedade que o degrada. Qualquer um que vivesse absolutamente só logo perderia a faculdade de pensar e exprimir-se; seria penoso para si mesmo; só conseguiria metamorfosear-se em bicho. O excesso de orgulho impotente, que se insurge contra o orgulho dos outros, pode levar uma alma melancólica a fugir do convívio humano. É então que se deprava. Pune apenas a si mesma: seu orgulho é seu suplício, e ela se rala na solidão do despeito secreto de ser desprezada e esquecida; entregou-se à mais horrível escravidão para ser livre” (verbete “Homem”, p. 941). O orgulho destrói as conquistas da razão, que são frágeis e têm de ser reiteradas a todo momento.
Voltaire considera certas palavras como especialmente valiosas. Nem sempre são as que nós consideramos importantes. É o caso, por exemplo, de “metamorfose”. Mais uma vez, o contraste com a Enciclopédia é útil. Na obra de Diderot e d’Alembert, esse termo tem dois empregos, sendo utilizado na poesia por referência a Ovídio e a Apuleio, e na história natural dos insetos para explicar alterações de forma. No primeiro caso, metamorfose diz a transformação de um ser vivo em outro, geralmente do homem em animal ou vegetal, provocada por maldição ou encanto, processo no qual os seres humanos perdem sua voz e, logo, a capacidade de exprimir sua razão. Já na ciência, metamorfose é o processo por meio do qual um ser vivo adquire, em um determinado estágio de seu desenvolvimento, uma forma diferente da que tinha antes, sem, no entanto, trocar de espécie.
Voltaire tem um Deus, sereno, que dispensa a devoção vulgar e exige uma compenetração lúcida
A essas duas acepções Voltaire acrescenta uma terceira, referente à religião. “Não será natural que todas as metamorfoses de que a terra está coberta tenham levado a imaginar no oriente, onde se imaginou de tudo, que nossa alma passa de um corpo para outro?” O fenômeno natural explica a crença religiosa, bem como a imaginação poética: “Também é muito natural que todas as metamorfoses de que somos testemunhas tenham produzido aquelas antigas fábulas que Ovídio coligiu em sua admirável obra; “os próprios judeus tiveram suas metamorfoses”. Seriam eles poetas? (“Metamorfoses”). Mais à frente, no verbete “Ressurreição”, Voltaire desfere o golpe: “O padre Malebranche prova a ressurreição recorrendo às lagartas, que se tornam borboletas. Essa prova, como se vê, é tão tênue quanto as asas dos insetos de que ele se vale”.
Uma obra satírica
O Dicionário filosófico é um livro que ofende. Para muitos de nós, seu elogio do “belo sexo” soa machista, seu desdém pelas tradições populares parece antiquado, seu ataque à religião cheira a intolerância, sua incompreensão dos sistemas filosóficos é tacanha. E admira que seja assim? Estamos acostumados a julgar épocas passadas pelo parâmetro de nossos próprios preconceitos, e não nos passa pela cabeça que nossas crenças valem tanto quanto as dos que vieram antes de nós. Mas o Dicionário é satírico, e é da natureza da sátira ofender. Entre agradar a todos e não atingir o inimigo e desagradar a muitos e feri-lo de morte, a escolha de Voltaire é clara. Ele sabia da força da linguagem quando ela se desprende das coisas e volta-se para alvos; e tem a esperança de que, ao rebaixar o adversário, estaria abrindo o caminho para a elevação da natureza humana. Esse combate, conduzido com uma altivez que beira a arrogância e travado com um humor não raro corrosivo, tem um fundo de desespero. Se Voltaire proclama a todo instante o triunfo quase inevitável da razão, é porque teme, e por bons motivos, que ele não esteja assegurado e seja passageiro. Os séculos posteriores, com sua fé irracional em uma ideia de progresso cumulativo, esqueceram essa lição preciosa do Iluminismo. O preço pago foi, e continua a ser, bastante alto.
Mas o que pensa, afinal, esse militante da razão? Em meio ao combate, muitas vezes cruento, vislumbra-se, aqui e ali, a sua filosofia. E o que se vê então é encantador. Se quisermos encontrar Voltaire desarmado, basta ir, por exemplo, ao verbete “Natureza”, em que professa o seu credo com todas as letras. Não é porque ataca a religião que Voltaire é um descrente. Ele tem um Deus, sereno, que dispensa a devoção vulgar e exige, ao contrário, uma compenetração lúcida e sociável, aberta ao outro. A humildade da religião natural não se confunde, assim, com a humilhação da espécie humana e tampouco com o rebaixamento dos indivíduos perante a autoridade estabelecida (seja ela política ou religiosa). Personificando a natureza, Voltaire se põe a conversar com ela.
“Filósofo — Quem és, natureza? Vivo em ti; há cinquenta anos te busco e ainda não consegui te encontrar.
Natureza — Os antigos egípcios chamavam-me Ísis, puseram-me um grande véu na cabeça e disseram que ninguém poderia erguê-lo.
Filósofo — Por isso dirijo-me a ti. Consegui medir alguns de teus globos, conhecer seus trajetos, estabelecer as leis do movimento, mas não consegui saber quem és. Estás sempre atuando? Estás sempre passiva? Teus elementos se organizaram por si mesmos, assim como a água se coloca sobre a areia, o óleo sobre a água, o ar sobre o óleo? Tens um espírito que dirige todas as tuas operações, assim como os concílios são inspirados tão logo se reúnam, embora seus membros às vezes sejam ignorantes? Por gentileza, dize-me a palavra de teu enigma.
Natureza — Sou o grande todo. Não sei mais que isso. Não sou matematicista; e tudo em mim está arranjado de acordo com leis matemáticas. Adivinha se puderes como tudo isso se fez.
Filósofo — Sem dúvida, visto que teu grande todo não sabe matemática, e tuas leis são a mais profunda geometria, deve haver um eterno geômetra a dirigir-te, uma inteligência suprema a presidir tuas operações.
Natureza — Tens razão; sou água, terra, fogo, atmosfera, metal, mineral, pedra, vegetal, animal. Sinto muito bem que em mim há uma inteligência; tu tens uma, mas não a vês. Tampouco vejo a minha; sinto esse poder invisível; não posso conhecê-lo: por que tu, que és apenas uma pequena parte de mim, queres saber o que não sei?”
Eis aí, em poucas linhas, a suma do homem Voltaire, inteligência lúcida, escritor de gênio, apóstolo da razão, arauto das ciências, filósofo dos limites. É uma alegria reencontrá-lo tão vivo, falando em português nas páginas deste Dicionário filosófico.
Pedro Paulo Pimenta
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