Em 9 de março de 1762, o protestante francês Jean Calas,
é vítima de uma das maiores injustiças cometidas por questões religiosas. Acusado
de ter assassinado o próprio filho, Marc-Antoine, que por não conseguir
trabalho no comércio, nem ser aceito como advogado porque exigiam certificados
de catolicidade que ele não pôde obter, suicidou-se.
O caso é muito controverso. Jean Calas, 68 anos à época,
negociante em Toulouse, na França. Era protestante, como também toda a sua
família. Com exceção de Marc, que havia abjurado a heresia e recebia uma
pequena pensão do pai. Vivia em casa com toda a família. Um certo dia, é
encontrado sem vida, no térreo da residência. Junto à loja, enforcado numa
porta. Não havia no corpo nenhum ferimento, nenhum machucado.
Os pais e os irmãos se desesperaram com a cena. Seus
gritos foram ouvidos pelos vizinhos que logo se acercaram para se inteirarem da
situação. Logo, algum fanático da população gritou que Jean Calas havia
enforcado seu próprio filho Marc-Antoine. Esse grito, repetido, logo se tornou
unânime. Momentos depois, ninguém duvidava: toda a cidade foi persuadida de que
é um imperativo religioso entre os protestantes que um pai e uma mãe devem
assassinar seu filho tão logo ele queira converter-se.
O filósofo Voltaire (François-Marie Arouet) escreveu a
obra “Tratado sobre a tolerância”, em que disseca todo o caso, e mergulha no
assunto de forma mais aprofundada. Com uma abundância de argumentos, o pensador
realiza uma verdadeira sabatina sobre tolerância aos poderosos da época. O
pensador faz a seguinte explanação no capítulo VI:
O direito natural é aquele que a natureza indica a todos
os homens. Educastes vosso filho, ele vos deve respeito como a seu pai,
reconhecimento como a seu benfeitor. Tendes direito aos frutos da terra que
cultivastes com vossas mãos. Fizestes e recebestes uma promessa, ela deve ser
cumprida. Em todos os casos, o direito humano só pode se fundar nesse direito
de natureza; e o grande princípio, o princípio universal de ambos, é em toda a
terra: “Não faz o que não gostarias que te fizessem”. Ora, não se percebe como,
de acordo com esse princípio, um homem poderia dizer a outro: “Acredita no que
eu acredito e no que não podes acreditar, ou morrerás”.É o que dizem em
Portugal, na Espanha, em Goa.
Atualmente limitam-se a dizer, em alguns países:
“Crê, ou te abomino; crê, ou te farei todo o mal que puder; monstro, não tens
minha religião, logo não tens religião alguma: cumpre que sejas odiado por teus
vizinhos, tua cidade, tu província”.Se fosse de direito humano conduzir-se
dessa forma, caberia então que o japonês detestasse o chinês, o qual execraria
o siamês; este perseguiria os gancares, que cairiam sobre os habitantes do
Indo; o mongol arrancaria o coração do primeiro malabar que encontrasse; o
malabar poderia degolar o persa, que poderia massacrar o turco – e todos juntos
se lançariam sobre os cristãos, que por muito tempo devoraram-se uns aos
outros. O direito da intolerância é, pois, absurdo e bárbaro; é o direito dos
tigres, e bem mais horrível, pois os tigres só atacam para comer, enquanto nós
exterminamo-nos por parágrafos. 4 ( VOLTAIRE, 1763)
Imaginemos, se todas as sociedades de
todas as épocas utilizassem esse princípio universal citado por Voltaire, “Não
faz o que não gostarias que te fizessem”. Nenhum indivíduo agrediria o outro,
pois até mesmo antes de chegar às vias de fato, ele lembraria do princípio e
não levava a ofensa adiante. Ele mesmo e os seus seriam beneficiados em outra
ocasião.
É no Capítulo XXII de “Tratado Sobre a Tolerância”, que o
filósofo deixa registrado um de seus mais belos pensamentos; a Oração a Deus:
“Não é mais aos homens que me dirijo, é a ti. Deus de todos
os seres, de todos os mundos e de todos os tempos. Se é permitido a frágeis
criaturas perdidas na imensidão e imperceptíveis ao resto do universo, ousar te
pedir alguma coisa, a ti que tudo criaste, a ti cujos decretos são imutáveis e
eternos, digna-te olhar com piedade os erros decorrentes de nossa natureza. Que
esses erros não venham a ser nossas calamidades. Não nos deste um coração para
nos odiarmos e mãos para nos matarmos. Faz com que nos ajudemos mutuamente a
suportar o fardo de uma vida difícil e passageira; que as pequenas diferenças
entre as roupas que cobrem nossos corpos diminutos, entre nossas linguagens
insuficientes, entre nossos costumes ridículos, entre nossas leis imperfeitas,
entre nossas opiniões insensatas, entre nossas condições tão desproporcionadas
a nossos olhos e tão iguais diante de ti; que todas essas pequenas nuances que
distinguem os átomos dos chamados homens que não sejam sinais de ódio e de
perseguição; que os que acendem velas em pleno meio-dia para te celebrar
suportem os que se contentam com a luz de teu sol; que os que cobrem suas
vestes com linho branco para dizer que devemos te amar não detestem os que
dizem a mesma coisa sob um manto de lã negra; que seja igual te adorar num
jargão formado de uma antiga língua, ou num jargão mais novo; que aqueles cuja
roupa é tingida de vermelho ou de violeta, que dominam sobre uma pequena porção
de um montículo da lama deste mundo e que possuem alguns fragmentos
arredondados de certo metal usufruam sem orgulho o que chamam de grandeza e
riqueza, e que os outros não os invejem, pois sabes que não há nessas vaidades
nem o que invejar, nem do que se orgulhar. Possam todos os homens lembrar-se de
que são irmãos! Que abominem a tirania exercida sobre as almas, assim como
execram o banditismo que toma pela força o fruto do trabalho e da indústria
pacífica! Se os flagelos da guerra são inevitáveis, não nos odiemos, não nos
dilaceremos uns aos outros em tempos de paz e empreguemos o instante de nossa
existência para abençoar igualmente em mil línguas diversas, do Sião à
Califórnia, tua bondade que nos deu esse instante”.4( VOLTAIRE, 1763)
O pensador assume de forma muito
humilde, a nossa condição de criados, e eleva o pensamento ao alto, solicitando
ao criador a tolerância, que por muitas vezes deixamos ao lado. Mesmo que
declarando-se portador de benesses divinas. Coloca-nos em nossa posição de
igualdade perante todos e chama-nos a atenção para esquecermos a tirania de que
utilizamos para condenar semelhantes.
O
“Tratado sobre a Tolerância” de Voltaire, vai inspirar mais a diante a
“Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, de 1789, na França. Três
artigos nesse documento serão essenciais para a garantia da liberdade
religiosa.
Art. 4.º A liberdade consiste em poder fazer tudo que não
prejudique o próximo: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem
não tem por limites senão aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade
o gozo dos mesmos direitos. Estes limites apenas podem ser determinados pela
lei.
Art. 10.º Ninguém pode ser molestado por suas opiniões,
incluindo opiniões religiosas, desde que sua manifestação não perturbe a ordem
pública estabelecida pela lei.
Art. 11.º A livre comunicação das ideias e das opiniões é
um dos mais preciosos direitos do homem; todo cidadão pode, portanto, falar,
escrever, imprimir livremente, respondendo, todavia, pelos abusos desta
liberdade nos termos previstos na lei.5 ( VOLTAIRE, 1763)
A “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão” por sua
vez, servirão como base junto com outros documentos de outros pensadores e
outras nações para a histórica “Declaração Universal dos Direitos Humanos”,
instituída mundialmente a partir de 10 de dezembro de 1948.